do livro Os Dias Imprecisos
Ao Lado da Pedra
Uma tarde moída a atestar outonos, o sonho fustigado pela chuva gorda, a inquietação das mãos rente às giestas da escrita, o cenário acomodado ao olhar e Sebastião, sentado à lareira, apreciava as formas mágicas do fogo, as nítidas cores do fogo, e procurava assentar o pensamento ao alinhavar, nesse entardecer, o espaço invisível dos insectos e admirar a áspera cor da pedra. A espantosa rigidez da pedra!
– Serve muito bem, Trine.
Na véspera, mediu o círculo do cubículo, esse pequeno espaço que um dia elegeu como única morada de opção, e ali, agora abrigado da chuva e do vento, ouvindo Beethoven e os outros compositores clássicos, vai rompendo o rosto aos fins de tarde e inícios de noite, longe dos amigos, se amigos dele alguma vez o foram.
– Amigos, Trine? Coisa nenhuma. Impostores é o que eles são.
Trine, o velho cão que herdara da avó, e que, perdido de sono, lá ia arrebitando a orelha e agitando a cauda, nem uma nem duas.
Sebastião continuava a medir. A mesa ao meio, as pernas dos bancos, o comprimento que vai da porta interior ao canto do armário mais alto e viu, pela ínfima nesga de luar, desaparecer o rosto, a sombra do seu rosto estampada na pedra, pela entrada repentina da noite. E só a luz, a exígua luz de uma candeia pendurada no perf1l de uma viga escurecida que vai de parede a parede, perpassava a janela virada a sul por onde, mais tarde, ouvira o choro prolongado dos gatos a desafiar a atenção de Trine. E nada se opunha à trémula mortalha que os lábios de Sebastião enrolavam na construção artesanal de um cigarro. Nem a noite que passava devagar por entre a gasta pedra, nem a hora feliz de solidão.
Ele está consciente que as manhãs são feitas de ilusões e de desmanchos. E os sonhos, esses pássaros rebeldes, são como sopros de vento: de súbito, desaparecem.
Uma névoa profunda e efémera faz dissipar outros fragmentos de razão, outrora, quando decidiu separar-se da sociedade que diz absolutamente hipócrita, friamente injusta e exageradamente interesseira e procurava, agora isolado a gerir silêncios e ausências, constituir num derradeiro visionar de imagens, o exacto retrato de um sacana rotulado de escritor e de poeta (ó, estranha e ridícula duplicidade!) que se fazia amigo e, um dia, vá-se lá saber porquê, o agredira cinicamente com insultos e pontapés.
E Sebastião murmurava no entretanto de duas argolas de fumo que atirava para o ar.
– Estes gajos não nos poupam…
Procurava dar voltas à memória neste inútil naco de tempo, e o gajo que fosse lamber trampa para outro lado, porque só o sonho e este outro lado da vida onde só a loucura, a sua estimada loucura para a invenção das palavras ainda permanece. E dele não poderá dissociar-se Trine nem aquela cor de musgo sobre a pedra das paredes, sequer esta noite que passa na graça de desfolhar esperanças geometricamente perfeitas, o desejo dos espaços íntimos do casebre onde a poesia faz a sua sublime aparição, mais o pequeno transístor, sintonizado na RDP antena dois, que lhe oferece muito suavemente as Quatro Estações de Vivaldi. Neste instante, o Inverno.
Tomou o café, o café que tem a tez da sua pele, e fez correr a polpa dos dedos pela barba que lhe enche as faces do rosto, depois as mãos pelo cabelo crespo e voltou a falar para Trine num murmúrio enleado por uma lufada de fumo de outro cigarro que momentos antes acendera.
– É isso… os gajos não nos poupam.
Num leve gemido, vê-se que o cão o entende. E fácil é adivinhar que já lhe conhece os gestos e o olhar. E Trine estava ali deitado em curva sobre a sua velha manta de agasalho, sem esboçar um latido e, por fim, adormeceu num misto de paz e de cansaço, enquanto Sebastião iniciava, a um ritmo de beleza interior, o emaranhado jogo no arco das palavras imutáveis, rigorosamente expostas no simples retalho de papel que antes embrulhara o pão. Depois, leu pausadamente:
"aos ombros da noite as mãos tomam a luz / dobrada sobre o eixo das palavras / o resgate que já foi dos dias incontáveis"
Um leve trepidar de chuva, a voz branda do vento a fustigar a giesta e uma inquestionável vontade de escrever agora sobre a pedra, os olhos atirados à candeia de petróleo e outra vez o cigarro que arde entre dois dedos a preencher os instantes que ora passam a desbravar ausências no primeiro patamar da noite.
As horas avançam frias sobre o lajedo. E Sebastião, dobrado também ele "sobre o eixo das palavras", enrola-se na manta azul e deixa-se adormecer ao lado de Trine, ao lado da noite, ao lado do lume, com um poema registado em cada mão.